sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Lições da Borgonha: Time is Wine. And Wine is Life, por André Favero

Dia 31.10.2011, 10hs. Café da manhã em Beaune, coração da Borgonha. Vinho local para o desjejum. Nem arrisco as tentações do cardápio...trufas, escargot e até a tal androuillete (não recomendo). O mundo do vinho, ainda mais no velho mundo, tem seu charme, e tudo parece dar certo nesse negócio. Mas claro que não é sempre assim.

Depois de passar 2 dias em Chablis, capital do Chardonnay na Borgonha, e 3 dias em Beaune, capital do Pinot Noir, fica claro que a expressão “joie de vivre” - assim como o “dolce far niente” dos italianos – é praticada como uma religião por todos os habitantes da região. Mas não somente por mero hedonismo ou charme. Faz parte da cultura de uma vida sofrida também. Viver do vinho não é vida fácil.

Não por acaso, a cultura de produzir vinho geralmente envolve diversas gerações da mesma família, que demoram décadas para conseguir se estabelecer nesse negócio que exige dedicação extrema e aprimoramento a cada garrafa produzida, para chegar a um produto que o consumidor entenda como aceitável – e com um preço razoável.

E pra aumentar o drama – e consequentemente o charme - da história da Borgonha, a região foi alvo de pequenos “contratempos” ao longo da história. Desde os huguenotes da reforma protestante (calvinistas na maioria), os conflitos da Revolução Francesa, a invasão dos Prussianos, a Segunda Guerra Mundial, culminando com ataques impiedosos da Phyloxera (praga que ataca os vinhedos), a produção de vinhos da região sempre se reergueu e se reestruturou. E olha que os primeiros registros de exportação do vinho da região para a Inglaterra e Bélgica remontam a 1450.

De volta a 2011, no sábado dia 29.10.2011, às 18hs, a Madame Marchive nos recebia na sua vinícola em Chablis para mostrar os vinhos brancos que produz e vende pro mundo inteiro (90% da produção é exportada). Mesmo que tentemos visitar os segredos de outras vinícolas ao longo da viagem, acredito que esta foi a grande oportunidade de ouvir da fonte primária toda a paixão e labuta que envolve o mundo do vinho na França. Noutras visitas, meros turistas outra vez, e recebidos pelos funcionários dos passeios padrão.

Conhecer de perto esse espírito e os segredos de alcova dos produtores nem sempre é possível. Os produtores franceses guardam a sete chaves os enigmas das suas caves, e geralmente não dão acesso a turistas. A visita completa fica reservada para importadores e grupos de investidores. Mas na tarde nublada do dia 29 fomos contemplados pela sorte. E com a dedicação contagiante da Madame Marchive (veja o post anterior), proprietária do Domaine Les Malandes. Suas mãos grossas e calejadas diziam o quanto a própria dona se dedica pessoalmente, e fisicamente, ao negócio.

A cada explicação da posição do sol e da localização dos première crus (lado esquerdo e direito da margem do rio Yonne) e dos grand crus (somente lado direito da margem), largos goles da perfeição em forma de Chardonnay. O melhor do mundo, como o próprio mundo considera. E ela segue com os detalhes sobre as duas outras classificações do vinho local, inferiores ao grand cru e ao première cru: o chablis, plantado a noroeste, o petit-chablis, plantado a sudeste. Isso determina a inclinação do terreno, a quantidade de minerais do solo, o ângulo do sol, o grão de uva que será resultante desses fatores todos e finalmente, o vinho que será elaborado a partir dessa combinação. Ah, sim, se o clima colaborar, não chover muito, etc. A visita culminou com a abertura, inusitada, inesperada, dos porões da cave (sim, isso existe!), que levaram ao subsolo, onde está todo o processo. A partir daqui, deixo por conta da imaginação - ou curiosidade - de cada um. Mas vi detalhes que não havia visto nas inúmeras outras visitas em outros lugares/países.

Desses passeios enófilos todos fica cada vez mais forte a mesma história: o vigneron pensa e vive o vinho, ao longo de toda a vida. Desde a influência do pai ou do avô na infância, durante os estudos e dedicação na vida adulta, e na busca por novos e apaixonados gestores que o substituirão na velhice. E nem sempre são os filhos, para a tristeza dos pais e avôs. Acordam torcendo para não chover em demasia; dormem pensando na próxima vindima, pois uma safra ruim significa descontinuidade de todo um trabalho de décadas. Como em qualquer outro lugar vitivinífero, mas no Velho Mundo parece diferente, não sei dizer a razão. Não escondem que o vinho é a medida de tempo que determina o ontem, o hoje, o amanhã da sua laboriosa vida. Vida que depende muito do vinho. E a nossa vida, a cada aroma, sabor e história descoberta, depende da vida e do tempo deles.

Nenhum comentário:

Postar um comentário